que argumento é prateado como o mercúrio dos termómetros partidos, como o dorso dos peixes, reflectido no espelho da parte de cima da água? nenhum. o argumento coze-se e os lábios cosem-se e as árvores morrem e ressucitam, da forma a que nos fomos habituando.
a mulher olha as teclas muito tempo antes de escrever e assim que escreve é a palavra "renal". e decide começar um poema com a palavra "renal", mas isso não a deixa particularmente feliz. se com "renal" puder falar de máquinas, fazer analogias entre óleo e sangue, entre tubos e veias, cabos e nervos, metal e carne, vidro e olhos, sem ter de se desviar muito do assunto, porque a preocupa que o poema seja coerente e coeso, que faça sentido e que os outros o possam tocar com as bocas da cabeça e, ao fingir saboreá-lo, dizerem, entre si, "que obra magnífica!"
um homem dentro de um armário exige um talher embora visualize a palavra mentalmente ortograficamente errada ("talhere"), tem um prato na escuridão e na falta de ar, não consegue respirar e tem fome, as mãos ficam húmidas com o calor mas ensinaram-no que nunca, sob circunstância alguma, se deve comer com as mãos. por isso, a comida derrete e apodrece no colo, em cima de um prato, e o ar rareia. a morte pesa pouco. interfere pouco. é um corte na mão, a morte. houve um homem que morreu, com as suas unhas já mortas, e recortaram-lhe a fotografia do bilhete de identidade para o obituário, onde o colocaram ao lado de outras mulheres e homens que morreram. dentro de um armário, tanta morte. a escolher fotografias correctas para um obituário fechado no escuro, a tactear o relevo, no desespero imperativo das impressões digitais que também acumulam pó e lixo orgânico. tem uma nítida recordação de pianos numa praia e de folhas de partituras, tudo isso dentro dos dedos magros da morte, na paisagem que é a morte, dentro de um armário forrado de jornais nas páginas de necrologia. ninguém fala da morte no escuro, ninguém arranha a morte em florestas de faias. com todas as necrologias pode-se construir um barco gigantesco que siga na direcção oposta ao sol, navegando para onde seja sempre noite, onde seja sempre unhas e escuro e mulheres que choram nas praias pelos maridos que morreram no mar a bordo de pianos e folhas soltas de partituras.
dá para se ficar mais de três horas na gare dos autocarros, na província, com calor e máquinas de distribuição de snacks e de refrigerantes avariadas, com os corações já destruídos e nenhuma capacidade de engolir moedas. há uma mulher que diz que "se a vida é um erro lamentável, se tem muitos erros tipográficos, porque não nos preocupamos com isso? ao lermos um livro, irritam-nos os erros tipográficos, deviam-nos irritar mais aqueles que pejam as nossas vidas. porque às vezes os livros são como vidas, mas por mais que tentemos as vidas nunca chegam a ser como livros." a mulher está de chinelos e deixou o cigarro apagar-se-lhe entre os dedos há mais de uma hora e dez minutos. não há nenhum autocarro para ela, nenhum transporte que a leve. não há transportes, não há pessoas para irem dentro dos transportes e, por isso, acabaram com os transportes. tudo são pequenos erros tipográficos, mas se nos irritam, nos livros, deviam irritar-nos ainda mais, na vida. mas não lhes damos importância. nunca podemos dar importância a nada, dizem que não nos devemos preocupar com nada, nem com as cinco ou seis horas, ao calor e sem máquinas de venda a funcionar, à espera na gare dos autocarros. que isso são erros tipográficos. são fins de poemas, são pequenas exactidões religiosas numa comunhão com vides secas e cigarros apagados nas mãos de uma mulher há mais de uma hora e um quarto.
no incêndio em que a casa desaparece não se sente o cheiro desconfortável das flores de plástico e dos tupperwares. são muitos graus fahrenheit, os necessários, com vista a que a casa desapareça, se desmorone sobre os seus próprios despojos e lixo incandescente que não foi lixo para todos os corpos que nele se esconderam através de alguns anos. na estrada vê-se as almas do fogo a subir sob a forma de fagulha, de vaga-lume metaficcional.
no encontro a voz não se assemelhou a veludo, só a guardanapos. "preciso", dizes, com os lábios humedecidos só um pouco e as pernas cruzadas, o encontro talvez se resuma a isso. e passas, obviamente, os dedos por entre os seios, se tivesse sido eu a dizê-lo diria "mamas", é a grande diferença entre ser-se um homem, estar preso em anèr, andròs e em épocas que são como plantas mortas que se abrem à chuva, fingir, fingir um bocado que não, que tenho uma permuta com um útero de estrogénio e um feto ligeiro como um jarro de vidro para flores. tu estás no encontro, com as mamas e as pernas, o vestido e os lábios. distante daqui, tudo o que dizes tem a forma de um silêncio, de um cavalo cinzento escondido debaixo de líquenes e de pedras. atira o fumo do tabaco todo contra o tecto, contra os olhos, fecha os olhos, relincha quando for de noite, quando os teus dedos fazem desabrochar uma camélia de carne e água escondida no calor das coxas.
são ignotos os bichos que escondemos há tantos anos no peito, demorados, lentos, silenciosos. das mãos sai uma estrada, os olhos saboreiam um mel de fígados e de vidros espalhados, de termómetros partidos com mercúrio pelo chão, na alcatifa, perto dos homens e das velas de aniversário.
os animais escondidos vão morrendo, a pouco e pouco fica só um peso e decomposição e húmus no peito, décadas é tempo a mais para que um animal aguente, sobreviva. lá fora é o que vemos, os cães morrem mais depressa que as pessoas. não semeámos anjos nem divindades áureas no peito, nada dessas platinas clássicas; só animais, coisas baixas, rentes ao chão, silenciosas, que nos vão perecendo dia após dia, até não restar nenhum e termos de os pescar pela boca, cadáveres escuros de outro tempo, bolas gasosas, lagartas que não tiveram tempo de dentro da crisálida do nosso peito se transformar em borboletas de fogo.
come-se um peixe com o cuidado minucioso de escolher as espinhas dentro da boca, um temor relativo porque desagrada ferir as bochechas por dentro com objectos estranhos e não comestíveis. está escuro, entardeceu, faz falta a voz de uma mulher que diga "já vou" e contra a luz que resta conseguir ir percebendo uma silhueta. o peixe é mais difícil no escuro, não aparenta ter voz nenhuma, assemelha-se a uma bailarina recém-divorciada com os pés inchados, aos quarenta e um anos, a saber naquele momento que a vida não tem propósito nenhum, só uma amargura constante, um emprego, uma utilidade, é importante ao menos ser-se útil. o peixe corrige-me como aqueles professores que já não tinham esferográficas de tinta vermelha quando chegava ao nosso número (17, 19, 21) e escreviam a verde "incompleto" "incoerente" "boa ideia, mas má concretização". o peixe escreve a verde, é uma boa cor para as espinhas do peixe dentro da boca, incompletas, incoerentes, incostantes, com boas ideias, mas péssimas concretizações. no escuro custa encontrar amigos, há pessoas que fazem companhia numas horas, mas o tempo que se passa isolado, sós connosco, é como uma espinha que se alojou no apêndice, ao pé de carros de brincar, seringas, guarda-chuvas, bocados de tecido que tomaram a forma de asas ou outras partes de insectos e mamíferos alados. comer um peixe cozido, no sótão, com a chuva na clarabóia, o chão sujo de espinhas e escamas e a casa vazia, só o corpo e um peixe, um peixe destruído, nem sequer morto, destruído, esburacado, bocados de carne rente às espinhas mais pequenas, todas irritam na língua e nas gengivas, e se falta a paciência para o amor também falta, há muito mais tempo, a paciência para ter espinhas de peixe no aparelho digestivo.
há homens que pensam como plantas e há homens que pensam como pássaros e homens que pensam ainda como nuvens ou carros aviões máquinas variadas há homens que pensam como mulheres mas ainda não encontrei mulheres que pensem como homens e isso é triste e doloroso porque me dá a impressão de que devia gostar mais de homens sobretudo dos homens que conseguem pensar como mulheres ou pelo menos dos que sabem fazê-lo como nuvens. prefiro no entanto pensar em mulheres que só sabem ser mulheres mesmo que no fim isso sejam só dissabores desencantos e muitas nuvens apertadas nas mãos nos ossos na carne a oferecer muita humidade e desconforto ao organismo.
quem, de entre vós, não tiver pecados, que atire a primeira pedra mas, no caso de não haver pedras à mão, pode arremessar um livro, um abat-jour, uma mala ou um cinzeiro.
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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