vejo os nomes nas pedras. piso as pedras. os nomes nas pedras não me dizem absolutamente nada mas numa época que já não a minha falaram, moveram-se como me movo sobre as pedras, regaram plantas, tiveram febres, cancros, constipações. noutros poemas li mais ou menos as mesmas coisas, porque é natural pensar-se nisto: as vidas dos mortos. agora são nomes e não me dizem nada, não me comunicam nada - é também por culpa dos dias de hoje, a minha insensibilidade, o meu caroço de simpatia tão difícil de aceder por causa da carne de egoísmo que o rodeia. posso imaginar a vida dos mortos dentro destes muros, o silêncio da vida dos mortos, as suas sombras, os dias em que choveu muito e apanharam doenças, os dias em que morreram porque choveu muito, enquanto os cavalos corriam junto ao rio sem essas preocupações. a minha inutilidade é que se mostra, total e inteira, quando noto que nem sei quem são os mortos, e esses que a minha imaginação ressuscita são só projectos de almas mudas que não pertencem a nenhum sítio.
traduz um espelho deste lado o teu corpo queima os dedos deste lado dos espelhos e a tua boca segura esta colher de plástico quando comes dos boiões com preparado de comida para bebés lê um espelho no corpo todo descasca um fruto olha para um fruto e queima os dedos antes de ires embora trabalhar a respiração lá fora sem abrigo sem refúgio dos micróbios das pessoas dos animais selvagens nem das flores a tua pele queima os dedos quando descascamos a roupa e ficas apenas com cabelo e olhos e braços e ombros e nudez e o teu rosto no escuro diz palavras com uma forma assustadora numa língua de mamíferos gigantescos.
uma meia no meio do lixo da casa em cima de um livro teu, para que me lembre que o amor são antes de mais insectos quotidianos, insignificâncias com um valor exacerbado, permanências das mãos, dos lábios, dos olhos, coisas que te edificaram ao longe, quando o tempo não era nosso em comunhão. sentir falta do edifício do teu corpo quando vejo uma meia e um livro no meio do lixo da casa, faróis nocturnos que apontam um local onde desembarcar não é perigoso.
os homens do serviço de meteorologia percebem mais de poesia do que eu quando me dizem à distância ao longo dos cabos do cobre da fibra óptica que estão 17 graus centígrados na zona do Cabo Carvoeiro só que não pensam nisso e eu sim eu penso nisso e observo-os a construir um conjunto de metáforas de imagens de poemas ao longo de várias gerações guardados em livros em armários em arquivos de televisão em caches de sites na internet os homens da meteorologia funcionam como demiurgos invisíveis a mexer numa música magnética de fios de satélites de aviões minúsculos que deixam um rasto de nuvens brancas artificiais iguais à formação em V das aves migratórias mas os homens da meteorologia não se apercebem destas coisas a sua única preocupação é não confundir a humidade do ar e a velocidade do vento com um violoncelo.
tocas-me com a ponta dos dedos porque a tua pele é uma película de filme e à luz conta segredos com uma certa cinematografia obscura. mas quando me tocas com os lábios nos ombros e no pescoço é outra coisa, é como se um casulo se rasgasse sem sangue nem líquidos, só seco do sol, a soltar lá de dentro um animal fraco que procura aninhar-se no meio das tuas pernas.
escolheu um serrote para colher a garganta, encostou a lâmina à pele e lembrou-se do tremendo lugar-comum que é a palavra lâmina. para qualquer efeito, o quão usadas estão as imagens de morte nos poemas, a facilidade com que se usam. procurou num casaco por alguns trocos, encontrou um rebuçado de mentol, duas moedas escuras, um pedaço de cotão. estava frio na rua, o dinheiro não chegava para um copo de vinho no café em frente. era mais fácil a insuficiência renal.
"não ter medo, não entrar em pânico. não deves ter medo, sobretudo, de perder as pessoas", dizes, com os olhos postos num prato vazio, a desenhar figuras invisíveis com o garfo na superfície da mesa. "as pessoas não são coisas, não se ganham, não se perdem, usualmente não se compram." respondes-me que "toda a gente tem o seu preço", alego que "isso é um lugar-comum, os sentimentos, o fulcro, isso não se compra." e dizes que dizer-te isso não deixa de ser outro lugar-comum. e tens razão. "não queria que este fosse um poema sobre perder pessoas. ganhar pessoas. queria que fosse um poema sobre a beleza de uns lábios e o calor de umas pernas e a vontade que dá uma vulva, quando excitada e bela, a abrir-se como uma flor de fogo num livro de mitologia milenar perdido." contudo, apontas-me com o garfo e mostras-me que este poema é, na sua gramática fundamental, um poema triste sobre o medo de se perder uma pessoa. e eu mostro-te que é também um poema sobre lábios, água, mãos, música. "mas é menos isso." talvez. é um poema de sóis que embatem uns nos outros, cosido com algum medo, mas é, sobretudo, um poema de amor.
"um poema é ver." um poema é chorar sobre os corpos que secaram, sobre os que morreram, que se esconderam em necrotérios, um poema é ver que aqueles que se esconderam na voz dos nomes estrangeiros são iguais aos que morreram, é dizer um nome outrora conhecido e de repente a língua estar só a dizer pó e livros velhos sem interesse. um poema é esconder os cadáveres dos animais de estimação na sala grande, com o candelabro aceso. mas um poema não é nada disto, um poema é reconhecer que um poema não é nada disto. um poema passa obviamente por destruir a palavra "poema", dilacerar o seu significado o seu significante até não restar nada e nesse campo vazio poder olhar o horizonte e dar-lhe um nome, povoá-lo com os pedaços de amor e de medo que nos restam, chamar-lhe "çretitre", parir duas mãos que lavrem a terra infértil, jantar a voz dos nomes estrangeiros, amar a solidão quando sozinhos, à noite, não há novas mensagens nos aparelhos e no electromagnetismo da telecomunicação moderna, e depois dizer que um poema é ver, que um poema é saber ver, poder dizer, poder desconstruir, estar só no meio de uma nódoa branca onde as palavras são um ambiente de comparações infrutíferas.
na internet H diz procurar um homem divertido, sincero, responsável, trabalhador para amizade ou algo mais. está a sorrir numa fotografia, no canto superior esquerdo de um rectângulo. o resto do rectângulo está-lhe dedicado, pagou por ele, alugou um pequeno espaço para dizer que tem qualidades, defeitos menores, que gosta de aventura, de mistério, de surpresa, que não pode comer ovos, porque a fazem ficar indisposta, que já está há mais de três anos sem ir às consultas de psicoterapia e que se sente bem consigo mesma. e no computador portátil, aberto ao meu lado na mesa da esplanada do café habitual, este homem está parado em H, atentamente a ler o que H diz acerca de si mesma. mas se for alérgico à saliva dos gatos é possível que nunca a convide para sair, que nunca se apresentem com base no emprego que têm, e não nas pessoas que são ou que, no mínimo, julgam ser.
as mãos contra as mãos e um pedaço de ferro dentro da boca e a roupa que não serve e as árvores e o caminho de terra onde as cabras e os corvos
o meu pai
assanhado como um animal como uma cabra como um corvo e a garganta do meu pai como roupa que não serve num espaço de mitologias que mais parecem gramáticas
se se vir bem a sintaxe musical da mitologia, entenda-se, amanhã quando a cabeça do meu pai couber nos bolsos e dos campos colherem couves de pus e de linfa e os corvos apanharem os meus olhos nos bicos para que as futuras gerações não morram. não me desagrada que o meu suor nas mãos contra as mãos
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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