as mãos contra as mãos e um pedaço de ferro dentro da boca e a roupa que não serve e as árvores e o caminho de terra onde as cabras e os corvos
o meu pai
assanhado como um animal como uma cabra como um corvo e a garganta do meu pai como roupa que não serve num espaço de mitologias que mais parecem gramáticas
se se vir bem a sintaxe musical da mitologia, entenda-se, amanhã quando a cabeça do meu pai couber nos bolsos e dos campos colherem couves de pus e de linfa e os corvos apanharem os meus olhos nos bicos para que as futuras gerações não morram. não me desagrada que o meu suor nas mãos contra as mãos
ninguém voltou do mar naquela tarde e os corpos que esperavam na praia eram mais como barcos naufragados quando os pedaços de barco naufragado deram à costa. nessa noite disse coisas sobre o amor e sobre a poesia junto ao teu pescoço e fingiste que te interessava. o amor e a poesia não têm grande relevância prática junto ao teu pescoço quando as pessoas que esperavam na praia pelos que morreram no mar naquela tarde andavam agora à solta pela vila e as suas mágoas eram maiores do que o facto de não me poderes amar. e nas esquinas as putas naufragavam com o resto dos homens que tinham chegado à costa com restos de redes e de crustáceos, com todo o amor e com toda a poesia que nos faltou encontrar juntos.
finding no solace, no relief in speech, Rose drove all through the rundown part of town in search of a man who would just stand next to to her in silence and held her hand. because sometimes men are useless and most of the time they do not even amount to that uselessness. she knew the expression "finding no solace" was cliché'd but, still, it really was what she meant to say when she thought it, when her brain's mouth spoke it. "finding absolutely no solace whatsoever in speech, i must drive all through the rundown part of town in search of a watch that can still tell me whether it's time to give up breathing or not". instead she found a man leaving the old automat, looking sad and aged, capable of silence and decline. so, they spent the night in her car, under the railway overpass, saying nothing, eating away at a sandwich and seeing lights flickering, electric daily fireflies dying on top of steel sail- -less masts on ghost shipwrecked ships sinking heavily into the city's belly.
(de certeza absoluta que, sob o tabaco que se te prende à pele, cheiras a madeira fresca e a líquenes novos e a outros - muitos mais - excessos de vida silvestre.)
morrer-se de cólera nos inícios do século XX, com as mãos dependuradas e só um avental vestido, mais nada, a pele suja de sangue e as unhas, as fendas mínimas das unhas, perto da carne, sujas de sangue e de coalho e de preto, com as as costelas à vista, assemelhando-se a um instrumento de percussão, de perscrutação, clínicas e doentes, prontas a terem medicamentos prescritos. a poesia desapareceu mais do que deus e o homem. reside nestes dias dentro das coisas fotovoltáicas que tremem dentro das máquinas, nos cafés e nas repartições de finanças e nos hospitais e nas bibliotecas. mas ao morrer-se de cólera nos inícios do século XX, com a poesia dependurada e só uma palavra vestida, mais nada, a pele suja de unhas e o sangue, as fendas mínimas do sangue, perto da carne, sujo de unhas e de coalho e de preto. o preto não é uma cor mas por motivos de pragmática e semântica é uma cor.
que argumento é prateado como o mercúrio dos termómetros partidos, como o dorso dos peixes, reflectido no espelho da parte de cima da água? nenhum. o argumento coze-se e os lábios cosem-se e as árvores morrem e ressucitam, da forma a que nos fomos habituando.
a mulher olha as teclas muito tempo antes de escrever e assim que escreve é a palavra "renal". e decide começar um poema com a palavra "renal", mas isso não a deixa particularmente feliz. se com "renal" puder falar de máquinas, fazer analogias entre óleo e sangue, entre tubos e veias, cabos e nervos, metal e carne, vidro e olhos, sem ter de se desviar muito do assunto, porque a preocupa que o poema seja coerente e coeso, que faça sentido e que os outros o possam tocar com as bocas da cabeça e, ao fingir saboreá-lo, dizerem, entre si, "que obra magnífica!"
um homem dentro de um armário exige um talher embora visualize a palavra mentalmente ortograficamente errada ("talhere"), tem um prato na escuridão e na falta de ar, não consegue respirar e tem fome, as mãos ficam húmidas com o calor mas ensinaram-no que nunca, sob circunstância alguma, se deve comer com as mãos. por isso, a comida derrete e apodrece no colo, em cima de um prato, e o ar rareia. a morte pesa pouco. interfere pouco. é um corte na mão, a morte. houve um homem que morreu, com as suas unhas já mortas, e recortaram-lhe a fotografia do bilhete de identidade para o obituário, onde o colocaram ao lado de outras mulheres e homens que morreram. dentro de um armário, tanta morte. a escolher fotografias correctas para um obituário fechado no escuro, a tactear o relevo, no desespero imperativo das impressões digitais que também acumulam pó e lixo orgânico. tem uma nítida recordação de pianos numa praia e de folhas de partituras, tudo isso dentro dos dedos magros da morte, na paisagem que é a morte, dentro de um armário forrado de jornais nas páginas de necrologia. ninguém fala da morte no escuro, ninguém arranha a morte em florestas de faias. com todas as necrologias pode-se construir um barco gigantesco que siga na direcção oposta ao sol, navegando para onde seja sempre noite, onde seja sempre unhas e escuro e mulheres que choram nas praias pelos maridos que morreram no mar a bordo de pianos e folhas soltas de partituras.
dá para se ficar mais de três horas na gare dos autocarros, na província, com calor e máquinas de distribuição de snacks e de refrigerantes avariadas, com os corações já destruídos e nenhuma capacidade de engolir moedas. há uma mulher que diz que "se a vida é um erro lamentável, se tem muitos erros tipográficos, porque não nos preocupamos com isso? ao lermos um livro, irritam-nos os erros tipográficos, deviam-nos irritar mais aqueles que pejam as nossas vidas. porque às vezes os livros são como vidas, mas por mais que tentemos as vidas nunca chegam a ser como livros." a mulher está de chinelos e deixou o cigarro apagar-se-lhe entre os dedos há mais de uma hora e dez minutos. não há nenhum autocarro para ela, nenhum transporte que a leve. não há transportes, não há pessoas para irem dentro dos transportes e, por isso, acabaram com os transportes. tudo são pequenos erros tipográficos, mas se nos irritam, nos livros, deviam irritar-nos ainda mais, na vida. mas não lhes damos importância. nunca podemos dar importância a nada, dizem que não nos devemos preocupar com nada, nem com as cinco ou seis horas, ao calor e sem máquinas de venda a funcionar, à espera na gare dos autocarros. que isso são erros tipográficos. são fins de poemas, são pequenas exactidões religiosas numa comunhão com vides secas e cigarros apagados nas mãos de uma mulher há mais de uma hora e um quarto.
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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