este é o espaço para o teu nome. vou sempre criar espaço para o teu nome, ele ocupa todo o espaço, todas as letras, todo o coração, queima como uma revelação bíblica, é um guarda-fatos de fotografias. aqui é o espaço para o teu nome, a voz para vocalizar o teu nome, o amor escuro que sintetiza o teu nome correndo no meio de arbustos, fontes e letras. e o teu nome é um abraço musical onde te seguras.
o tempo pode ter a duração de um braço ou dos cabelos que se deixaram nos barbeiros e que acabam por formar um rio com o resto do lixo, independentes das mãos que os tocaram, que os puxaram, dos lábios que os beijaram, dos rostos em que tocaram quando em cadência os corpos se ofereciam na planta do sexo. nem sempre os cabelos foram lixo, objecto de asco no meio da água, mortos, despidos de toda a beleza possível. e é isso que o tempo dura, uma chave que roda com peso num cadeado, numa porta. nunca as portas dão para algum lugar que valha realmente a pena.
vejo os nomes nas pedras. piso as pedras. os nomes nas pedras não me dizem absolutamente nada mas numa época que já não a minha falaram, moveram-se como me movo sobre as pedras, regaram plantas, tiveram febres, cancros, constipações. noutros poemas li mais ou menos as mesmas coisas, porque é natural pensar-se nisto: as vidas dos mortos. agora são nomes e não me dizem nada, não me comunicam nada - é também por culpa dos dias de hoje, a minha insensibilidade, o meu caroço de simpatia tão difícil de aceder por causa da carne de egoísmo que o rodeia. posso imaginar a vida dos mortos dentro destes muros, o silêncio da vida dos mortos, as suas sombras, os dias em que choveu muito e apanharam doenças, os dias em que morreram porque choveu muito, enquanto os cavalos corriam junto ao rio sem essas preocupações. a minha inutilidade é que se mostra, total e inteira, quando noto que nem sei quem são os mortos, e esses que a minha imaginação ressuscita são só projectos de almas mudas que não pertencem a nenhum sítio.
traduz um espelho deste lado o teu corpo queima os dedos deste lado dos espelhos e a tua boca segura esta colher de plástico quando comes dos boiões com preparado de comida para bebés lê um espelho no corpo todo descasca um fruto olha para um fruto e queima os dedos antes de ires embora trabalhar a respiração lá fora sem abrigo sem refúgio dos micróbios das pessoas dos animais selvagens nem das flores a tua pele queima os dedos quando descascamos a roupa e ficas apenas com cabelo e olhos e braços e ombros e nudez e o teu rosto no escuro diz palavras com uma forma assustadora numa língua de mamíferos gigantescos.
uma meia no meio do lixo da casa em cima de um livro teu, para que me lembre que o amor são antes de mais insectos quotidianos, insignificâncias com um valor exacerbado, permanências das mãos, dos lábios, dos olhos, coisas que te edificaram ao longe, quando o tempo não era nosso em comunhão. sentir falta do edifício do teu corpo quando vejo uma meia e um livro no meio do lixo da casa, faróis nocturnos que apontam um local onde desembarcar não é perigoso.
os homens do serviço de meteorologia percebem mais de poesia do que eu quando me dizem à distância ao longo dos cabos do cobre da fibra óptica que estão 17 graus centígrados na zona do Cabo Carvoeiro só que não pensam nisso e eu sim eu penso nisso e observo-os a construir um conjunto de metáforas de imagens de poemas ao longo de várias gerações guardados em livros em armários em arquivos de televisão em caches de sites na internet os homens da meteorologia funcionam como demiurgos invisíveis a mexer numa música magnética de fios de satélites de aviões minúsculos que deixam um rasto de nuvens brancas artificiais iguais à formação em V das aves migratórias mas os homens da meteorologia não se apercebem destas coisas a sua única preocupação é não confundir a humidade do ar e a velocidade do vento com um violoncelo.
tocas-me com a ponta dos dedos porque a tua pele é uma película de filme e à luz conta segredos com uma certa cinematografia obscura. mas quando me tocas com os lábios nos ombros e no pescoço é outra coisa, é como se um casulo se rasgasse sem sangue nem líquidos, só seco do sol, a soltar lá de dentro um animal fraco que procura aninhar-se no meio das tuas pernas.
escolheu um serrote para colher a garganta, encostou a lâmina à pele e lembrou-se do tremendo lugar-comum que é a palavra lâmina. para qualquer efeito, o quão usadas estão as imagens de morte nos poemas, a facilidade com que se usam. procurou num casaco por alguns trocos, encontrou um rebuçado de mentol, duas moedas escuras, um pedaço de cotão. estava frio na rua, o dinheiro não chegava para um copo de vinho no café em frente. era mais fácil a insuficiência renal.
"não ter medo, não entrar em pânico. não deves ter medo, sobretudo, de perder as pessoas", dizes, com os olhos postos num prato vazio, a desenhar figuras invisíveis com o garfo na superfície da mesa. "as pessoas não são coisas, não se ganham, não se perdem, usualmente não se compram." respondes-me que "toda a gente tem o seu preço", alego que "isso é um lugar-comum, os sentimentos, o fulcro, isso não se compra." e dizes que dizer-te isso não deixa de ser outro lugar-comum. e tens razão. "não queria que este fosse um poema sobre perder pessoas. ganhar pessoas. queria que fosse um poema sobre a beleza de uns lábios e o calor de umas pernas e a vontade que dá uma vulva, quando excitada e bela, a abrir-se como uma flor de fogo num livro de mitologia milenar perdido." contudo, apontas-me com o garfo e mostras-me que este poema é, na sua gramática fundamental, um poema triste sobre o medo de se perder uma pessoa. e eu mostro-te que é também um poema sobre lábios, água, mãos, música. "mas é menos isso." talvez. é um poema de sóis que embatem uns nos outros, cosido com algum medo, mas é, sobretudo, um poema de amor.
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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