"um poema é ver." um poema é chorar sobre os corpos que secaram, sobre os que morreram, que se esconderam em necrotérios, um poema é ver que aqueles que se esconderam na voz dos nomes estrangeiros são iguais aos que morreram, é dizer um nome outrora conhecido e de repente a língua estar só a dizer pó e livros velhos sem interesse. um poema é esconder os cadáveres dos animais de estimação na sala grande, com o candelabro aceso. mas um poema não é nada disto, um poema é reconhecer que um poema não é nada disto. um poema passa obviamente por destruir a palavra "poema", dilacerar o seu significado o seu significante até não restar nada e nesse campo vazio poder olhar o horizonte e dar-lhe um nome, povoá-lo com os pedaços de amor e de medo que nos restam, chamar-lhe "çretitre", parir duas mãos que lavrem a terra infértil, jantar a voz dos nomes estrangeiros, amar a solidão quando sozinhos, à noite, não há novas mensagens nos aparelhos e no electromagnetismo da telecomunicação moderna, e depois dizer que um poema é ver, que um poema é saber ver, poder dizer, poder desconstruir, estar só no meio de uma nódoa branca onde as palavras são um ambiente de comparações infrutíferas.
na internet H diz procurar um homem divertido, sincero, responsável, trabalhador para amizade ou algo mais. está a sorrir numa fotografia, no canto superior esquerdo de um rectângulo. o resto do rectângulo está-lhe dedicado, pagou por ele, alugou um pequeno espaço para dizer que tem qualidades, defeitos menores, que gosta de aventura, de mistério, de surpresa, que não pode comer ovos, porque a fazem ficar indisposta, que já está há mais de três anos sem ir às consultas de psicoterapia e que se sente bem consigo mesma. e no computador portátil, aberto ao meu lado na mesa da esplanada do café habitual, este homem está parado em H, atentamente a ler o que H diz acerca de si mesma. mas se for alérgico à saliva dos gatos é possível que nunca a convide para sair, que nunca se apresentem com base no emprego que têm, e não nas pessoas que são ou que, no mínimo, julgam ser.
as mãos contra as mãos e um pedaço de ferro dentro da boca e a roupa que não serve e as árvores e o caminho de terra onde as cabras e os corvos
o meu pai
assanhado como um animal como uma cabra como um corvo e a garganta do meu pai como roupa que não serve num espaço de mitologias que mais parecem gramáticas
se se vir bem a sintaxe musical da mitologia, entenda-se, amanhã quando a cabeça do meu pai couber nos bolsos e dos campos colherem couves de pus e de linfa e os corvos apanharem os meus olhos nos bicos para que as futuras gerações não morram. não me desagrada que o meu suor nas mãos contra as mãos
ninguém voltou do mar naquela tarde e os corpos que esperavam na praia eram mais como barcos naufragados quando os pedaços de barco naufragado deram à costa. nessa noite disse coisas sobre o amor e sobre a poesia junto ao teu pescoço e fingiste que te interessava. o amor e a poesia não têm grande relevância prática junto ao teu pescoço quando as pessoas que esperavam na praia pelos que morreram no mar naquela tarde andavam agora à solta pela vila e as suas mágoas eram maiores do que o facto de não me poderes amar. e nas esquinas as putas naufragavam com o resto dos homens que tinham chegado à costa com restos de redes e de crustáceos, com todo o amor e com toda a poesia que nos faltou encontrar juntos.
finding no solace, no relief in speech, Rose drove all through the rundown part of town in search of a man who would just stand next to to her in silence and held her hand. because sometimes men are useless and most of the time they do not even amount to that uselessness. she knew the expression "finding no solace" was cliché'd but, still, it really was what she meant to say when she thought it, when her brain's mouth spoke it. "finding absolutely no solace whatsoever in speech, i must drive all through the rundown part of town in search of a watch that can still tell me whether it's time to give up breathing or not". instead she found a man leaving the old automat, looking sad and aged, capable of silence and decline. so, they spent the night in her car, under the railway overpass, saying nothing, eating away at a sandwich and seeing lights flickering, electric daily fireflies dying on top of steel sail- -less masts on ghost shipwrecked ships sinking heavily into the city's belly.
(de certeza absoluta que, sob o tabaco que se te prende à pele, cheiras a madeira fresca e a líquenes novos e a outros - muitos mais - excessos de vida silvestre.)
morrer-se de cólera nos inícios do século XX, com as mãos dependuradas e só um avental vestido, mais nada, a pele suja de sangue e as unhas, as fendas mínimas das unhas, perto da carne, sujas de sangue e de coalho e de preto, com as as costelas à vista, assemelhando-se a um instrumento de percussão, de perscrutação, clínicas e doentes, prontas a terem medicamentos prescritos. a poesia desapareceu mais do que deus e o homem. reside nestes dias dentro das coisas fotovoltáicas que tremem dentro das máquinas, nos cafés e nas repartições de finanças e nos hospitais e nas bibliotecas. mas ao morrer-se de cólera nos inícios do século XX, com a poesia dependurada e só uma palavra vestida, mais nada, a pele suja de unhas e o sangue, as fendas mínimas do sangue, perto da carne, sujo de unhas e de coalho e de preto. o preto não é uma cor mas por motivos de pragmática e semântica é uma cor.
que argumento é prateado como o mercúrio dos termómetros partidos, como o dorso dos peixes, reflectido no espelho da parte de cima da água? nenhum. o argumento coze-se e os lábios cosem-se e as árvores morrem e ressucitam, da forma a que nos fomos habituando.
a mulher olha as teclas muito tempo antes de escrever e assim que escreve é a palavra "renal". e decide começar um poema com a palavra "renal", mas isso não a deixa particularmente feliz. se com "renal" puder falar de máquinas, fazer analogias entre óleo e sangue, entre tubos e veias, cabos e nervos, metal e carne, vidro e olhos, sem ter de se desviar muito do assunto, porque a preocupa que o poema seja coerente e coeso, que faça sentido e que os outros o possam tocar com as bocas da cabeça e, ao fingir saboreá-lo, dizerem, entre si, "que obra magnífica!"
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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