onde os dentes roxos encostam o esmalte nas pernas das mulheres velhas que passam pelas ruas sem ver que
a construção desmoronou e onde antigamente era uma oficina de mármores e granitos agora são paredes com placas e sombras
onde os dedos mas mais que os dedos as pontas dos dedos são de pais que levam os filhos para casas de banho públicas e gemem em cubículos ao lado de outros homens que cagam sem saber.
"a logofagia não existe, é um mito, uma ficção." em mundos diferentes, ou seja, num universo linguístico que é o teu, que envolve desvios e teorias mais científicas do que é a cabeça, o cérebro, de como funcionam as emoções, de como se explicam, talvez exista a logofagia, talvez a beleza seja só um gatilho muito concreto e básico de emoções, de hormonas, qualquer outra coisa, que tenha a ver com curvas, com ácidos, com sinapses. no entanto, sempre que falas, sempre que ris, sempre que tocas e acaricias e páras no supermercado porque uma garrafa fazia de contrapeso num caixote e ele cai para trás da prateleira, isso tudo é beleza, isso tudo é capaz de salvar todos os animais que morrem injustamente às mãos dos homens e das doenças.
estive "lá" tanto quanto possível ao contrário de aqui onde a ponta dos dedos toca na base da coluna vertebral e provoca um arrepio. onde as crianças perguntam "quando dormimos estamos acordados noutro sítio?" e as mães nunca lhes respondem porque são apenas vultos dentro de batas de aventais e dessas batas desses aventais sobram mãos que tocam nos olhos tapam os olhos inúteis das crianças. estivémos todos lá tanto quanto possível e ouvimos as vozes maculadas por uma ferrugem e por um resto de mercúrio e vidro estilhaçado e quando dormimos é possível mesmo que estejamos acordados noutro sítio. ou então resta-nos ver como envelhecem as latas de metal cuja voz enferruja despida de anjos de deuses só cilindros de metal abandonados no meio dos elementos "terra água ar fogo" sem voz sem nada sem nenhuma vontade incapazes. tanto quanto possível toquei na alma das coisas e a alma das coisas magoou-me.
este é o espaço para o teu nome. vou sempre criar espaço para o teu nome, ele ocupa todo o espaço, todas as letras, todo o coração, queima como uma revelação bíblica, é um guarda-fatos de fotografias. aqui é o espaço para o teu nome, a voz para vocalizar o teu nome, o amor escuro que sintetiza o teu nome correndo no meio de arbustos, fontes e letras. e o teu nome é um abraço musical onde te seguras.
o tempo pode ter a duração de um braço ou dos cabelos que se deixaram nos barbeiros e que acabam por formar um rio com o resto do lixo, independentes das mãos que os tocaram, que os puxaram, dos lábios que os beijaram, dos rostos em que tocaram quando em cadência os corpos se ofereciam na planta do sexo. nem sempre os cabelos foram lixo, objecto de asco no meio da água, mortos, despidos de toda a beleza possível. e é isso que o tempo dura, uma chave que roda com peso num cadeado, numa porta. nunca as portas dão para algum lugar que valha realmente a pena.
vejo os nomes nas pedras. piso as pedras. os nomes nas pedras não me dizem absolutamente nada mas numa época que já não a minha falaram, moveram-se como me movo sobre as pedras, regaram plantas, tiveram febres, cancros, constipações. noutros poemas li mais ou menos as mesmas coisas, porque é natural pensar-se nisto: as vidas dos mortos. agora são nomes e não me dizem nada, não me comunicam nada - é também por culpa dos dias de hoje, a minha insensibilidade, o meu caroço de simpatia tão difícil de aceder por causa da carne de egoísmo que o rodeia. posso imaginar a vida dos mortos dentro destes muros, o silêncio da vida dos mortos, as suas sombras, os dias em que choveu muito e apanharam doenças, os dias em que morreram porque choveu muito, enquanto os cavalos corriam junto ao rio sem essas preocupações. a minha inutilidade é que se mostra, total e inteira, quando noto que nem sei quem são os mortos, e esses que a minha imaginação ressuscita são só projectos de almas mudas que não pertencem a nenhum sítio.
traduz um espelho deste lado o teu corpo queima os dedos deste lado dos espelhos e a tua boca segura esta colher de plástico quando comes dos boiões com preparado de comida para bebés lê um espelho no corpo todo descasca um fruto olha para um fruto e queima os dedos antes de ires embora trabalhar a respiração lá fora sem abrigo sem refúgio dos micróbios das pessoas dos animais selvagens nem das flores a tua pele queima os dedos quando descascamos a roupa e ficas apenas com cabelo e olhos e braços e ombros e nudez e o teu rosto no escuro diz palavras com uma forma assustadora numa língua de mamíferos gigantescos.
uma meia no meio do lixo da casa em cima de um livro teu, para que me lembre que o amor são antes de mais insectos quotidianos, insignificâncias com um valor exacerbado, permanências das mãos, dos lábios, dos olhos, coisas que te edificaram ao longe, quando o tempo não era nosso em comunhão. sentir falta do edifício do teu corpo quando vejo uma meia e um livro no meio do lixo da casa, faróis nocturnos que apontam um local onde desembarcar não é perigoso.
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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