ouvimos na qualidade de estrangeiros logo não falantes nativos da língua a explicação para fazer aquela actividade no parque e somos os únicos dois que na fotografia ficaram com a cabeça inclinada para a frente quase numa acção de proximidade para atenção maior contudo a fotografia não nos acompanhou quando decidimos não perder tempo com nada daquelas coisas tão modernas de actividades no parque no meio da cidade e decidimos ir antes ao café da esquina mais próxima beber chá e vinho tinto e falar do pôr do sol e dos teus cabelos e dos teus lábios.
"quando, daqui a dois anos, olhares para mim e para as coisas que disse, para as coisas que dissémos, que escrevemos, que jurámos, e em nada disso encontrares o sangue de agora, este animal selvagem que corre como flechas pelo meio das árvores e dos ossos, promete que não me odeias, que houve alguma coisa nossa e que isso merece um lugar na alma, um magnetismo na alma, que nunca se desligue, que nunca se apague. houve aqueles sítios e aquelas mãos foram as nossas, ainda vão sendo as nossas. quando o nosso amor não existir mais e olharmos para aqui é possível que não vejamos nada. mas, por favor, meu amor, quando olharmos para aqui ainda um bocado de nós vai estar a restar onde é isto. não me feches os olhos."
as pernas ardem um pouco mais abaixo dos joelhos conforme os teus lábios férteis sussurram ar contra o tórax destruído. como um tecto que ruiu, podem-se ver e tocar pequenos corpos estelares atrás dos ossos, furúnculos, animais estrangeiros com unhas luminosas, a dançar ao redor da árvore central do corpo, a fazer fogueiras rente à coluna vertebral. os lábios no teu rosto pela primeira vez em alguém apenas uma ferida feminina, com cheiro de estames violeta, de nuvens enroladas em vento azulado. tão teus, os lábios, entreabertos, com o cheiro, o vazio do cheiro, e as minhas pernas ardem, o meu fígado, os meus dentes, as coisas mortas de mim, cabelos, unhas, isso que está morto mas sobrevive quando morremos e cresce um pouco, ainda. as tuas pernas ardem um pouco ainda em torno da minha cabeça e apertam-me e sufocam-me e quando me lembro do teu nome não penso em princesas, penso em serpentes com penugem que esmagam, que constringem antes de destruirem as presas por afogamento. as tuas pernas são anacondas que ardem num amor que não acaba, mas os teus lábios entreabertos não cheiram a nada remotamente ofídio.
onde os dentes roxos encostam o esmalte nas pernas das mulheres velhas que passam pelas ruas sem ver que
a construção desmoronou e onde antigamente era uma oficina de mármores e granitos agora são paredes com placas e sombras
onde os dedos mas mais que os dedos as pontas dos dedos são de pais que levam os filhos para casas de banho públicas e gemem em cubículos ao lado de outros homens que cagam sem saber.
"a logofagia não existe, é um mito, uma ficção." em mundos diferentes, ou seja, num universo linguístico que é o teu, que envolve desvios e teorias mais científicas do que é a cabeça, o cérebro, de como funcionam as emoções, de como se explicam, talvez exista a logofagia, talvez a beleza seja só um gatilho muito concreto e básico de emoções, de hormonas, qualquer outra coisa, que tenha a ver com curvas, com ácidos, com sinapses. no entanto, sempre que falas, sempre que ris, sempre que tocas e acaricias e páras no supermercado porque uma garrafa fazia de contrapeso num caixote e ele cai para trás da prateleira, isso tudo é beleza, isso tudo é capaz de salvar todos os animais que morrem injustamente às mãos dos homens e das doenças.
estive "lá" tanto quanto possível ao contrário de aqui onde a ponta dos dedos toca na base da coluna vertebral e provoca um arrepio. onde as crianças perguntam "quando dormimos estamos acordados noutro sítio?" e as mães nunca lhes respondem porque são apenas vultos dentro de batas de aventais e dessas batas desses aventais sobram mãos que tocam nos olhos tapam os olhos inúteis das crianças. estivémos todos lá tanto quanto possível e ouvimos as vozes maculadas por uma ferrugem e por um resto de mercúrio e vidro estilhaçado e quando dormimos é possível mesmo que estejamos acordados noutro sítio. ou então resta-nos ver como envelhecem as latas de metal cuja voz enferruja despida de anjos de deuses só cilindros de metal abandonados no meio dos elementos "terra água ar fogo" sem voz sem nada sem nenhuma vontade incapazes. tanto quanto possível toquei na alma das coisas e a alma das coisas magoou-me.
este é o espaço para o teu nome. vou sempre criar espaço para o teu nome, ele ocupa todo o espaço, todas as letras, todo o coração, queima como uma revelação bíblica, é um guarda-fatos de fotografias. aqui é o espaço para o teu nome, a voz para vocalizar o teu nome, o amor escuro que sintetiza o teu nome correndo no meio de arbustos, fontes e letras. e o teu nome é um abraço musical onde te seguras.
A língua pode renascer em qualquer altura. O vento agita os ramos altos do cipreste; no escuro mármore lê-se ainda o meu nome. Morto, mas subitamente mais vivo, ouço os vastos barulhos terrestres e o anúncio subterrâneo da próxima catástrofe. Rindo-me para os bichos de quem sou a fria morada, abro e fecho os ossos do rosto num esgar de gozo. «Em breve o meu corpo regressará à superfície. Encontrar-me-eis, ó gente humana, nas idênticas circunstâncias do Juízo.» Nessa noite, os coveiros notaram uma insólita agitação no fundo da terra.
Nuno Júdice, in O Mecanismo Romântico da Fragmentação (1972)
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